Marcantonio Del Carlo: "Estar sempre a fazer de alguém cansa"
Em Mundo ao Contrário interpreta o papel de um italiano. O próprio Marcantonio tem nacionalidade italiana. Isso ajudou-o na construção da personagem?
Muito. O meu pai falava um português muito italiano. Essencialmente, ter ido buscar essa minha nacionalidade é um pouco como fazer-lhe uma homenagem. E tem sido um desafio para quem está a escrever a novela. Sendo eu bilingue, todo o meu texto está a ser reescrito em função das coisas que vou propondo. É giro ver que toda a equipa de produção e os outros atores andam a falar italiano.
As histórias que compõem esta produção tentam acompanhar a realidade portuguesa. Como argumentista e ator, sente que fazia falta uma novela menos fantasiosa?
Na verdade tenho pena que a ficção não se adapte mais vezes à realidade, ou que apenas a pinte sem se fixar nela. Acho que chegou à altura de olharmos para o dia a dia dos portugueses, que é tão rico em histórias. Mesmo sendo as novelas um sonho, acho que cada vez mais as pessoas apostam e querem ver ficção que tenha que ver com algo que lhes diga respeito. Aliás, há quem tenha memória curta, mas eu, felizmente, não tenho: o boom das novelas em Portugal deve-se a quê? Ao facto de se ter começado a falar em português, a representar em português e a contar histórias portuguesas.
Isso aconteceu muito antes do processo que a TVI desenvolveu e continua a desenvolver dentro da ficção.
Muito antes mesmo. Eu sou do tempo em que o País parou para saber se a personagem da Margarida Carpinteiro ia morrer ou não em Vila Faia [1982]. As pessoas gostam de se ver retratadas e chateia-me um bocadinho que quem produz atualmente não olhe para isso. Digo isto porque também escrevo para ficção e sei que as pessoas têm medo de apostar em produtos que contem claramente uma história portuguesa.
Têm medo de quê?
De arriscar. Mas o facto é que se o Nicolau Breyner, o Francisco Nicholson e essa gente toda não tivessem feito a Vila Faia, hoje não estávamos a fazer as novelas que fazemos.
O cabo constitui uma ameaça?
Não. Durante muitos anos não havia cabo e os portugueses consumiram apenas séries norte-americanas e novelas brasileiras. De um momento para o outro tudo mudou. Com isto quero dizer que pode voltar a mudar. Se nós não formos capazes de produzir cada vez mais novas ideias, mais contextos e falarmos do que se passam cá dentro, a todos os níveis, provavelmente corremos o risco de tudo voltar a inverter-se.
Isso já não aconteceu? As novelas brasileiras que passam na SIC têm muitas vezes mais espectadores do que as portuguesas.
A intermitência do público e a questão das audiências ultrapassam-me. Confesso que não domino. Já ouvi muitas versões: que são factuais, que não são factuais, que também têm o seu quê de perversão... Vejo-as apenas como uma boa chamada de atenção. Não só para a SIC, para a TVI ou para a RTP, mas para todos enquanto consumidores. O que os portugueses não podem é começar a escrever histórias à semelhança das pessoas que vivem no Brasil.
Mas um dos grandes sucessos de hoje é um remake de uma novela brasileira...
Isso dos remakes... Pegaram-se realmente em histórias já contadas, mas reinventaram-nas. Pegaram no nosso tempo e recriaram-nas. É preciso não esquecer que o mundo está em mudança e quem está à frente [dos canais de TV] tem de estar atento. Eu tenho pena dos programadores e dos conselhos de administração. Devem viver debaixo de uma pressão terrível. O pulsar do mundo está cada vez mais acelerado.
Marcantonio é professor. Para se ser ator, a formação é fundamental?
É, mas não é o que baste. Acho ridículo aqueles atores que vão fazer 20 mil cursos e depois não passam da mesma coisa porque pura e simplesmente não têm talento. Embora a formação seja fundamental, isso não quer dizer que uma pessoa que comece numa série e numa novela não tenha a sorte de ter bons diretores de atores e que, com a experiência e o trabalho que vai desenvolvendo, acabe por ter assim uma grande formação. O Charles Chaplin não tinha formação e era o que era: um talento.
Ouviu muitos "nãos" no início de carreira?
Eu acredito que tenho algum talento, mas também muita sorte. Durante anos, nas décadas de 80 e 90, consegui fazer um filme por ano, o que para o panorama do cinema português não era nada mau. Quando cheguei à televisão, nada para mim era tão estranho como os meus colegas que vinham do teatro. Depois, fui ator de companhia, o que me permitiu ter um espetáculo à tarde e estar em cartaz com outro à noite. Isso deu-me hipótese de falhar muito e de não perder o trabalho por ter contrato. Quando cheguei à TV já tinha muita coisa falhada. Respondendo diretamente, nunca ouvi muitos nãos.
Nunca quis desistir de ser ator?
Claro que sim. Estar sempre a fazer de alguém cansa. Não são as entrevistas nem estas coisas, que fazem parte do fait diver. Costumo dizer que quem vem para esta profissão e não quer dar entrevistas mais vale não vir. O complicado é estar durante 12 horas por dia a fazer de outra pessoa. De uma pessoa que chora quando nos apetece rir, que ri quando nos apetece chorar... Tenho colegas meus que já me disseram que estão cansados de ser atores e que só continuam porque têm contas para pagar.
Ter mantido contrato de exclusividade, ao contrário de muitos dos seus colegas, continua a ser sinal da sorte que o bafejou?
Bem... também acaba em agosto [risos]. Mas nunca me iludi com o exclusivo, nunca pensei que o iria ter para sempre. Aprendi a não me preocupar muito com o futuro mas mais com o presente. É claro que olho para a frente, até porque tenho uma família, mas vivo o dia a dia.
Mas sabendo que o seu exclusivo termina daqui a um mês, não o preocupa deixar de ter um rendimento fixo?
Não. Sabe porquê? Porque não comprei um BMW nem casas com piscina. Não vivi nunca acima da minha média. Há muito a tendência para pensar que as pessoas que estão neste meio ganham todas o que o Cristiano Ronaldo ganha, mas nós ganhamos de forma miserável. Não somos deuses só porque vamos a festas ou eventos. O meu medo é não trabalhar, não só para conseguir pagar as contas mas porque um ator precisa de trabalhar.
O avançar da idade não alimenta ainda mais esse receio?
O que me assusta não é a idade em si. Adoro ter 48 anos e a tranquilidade que eles me dão. Assusta-me a falta de saúde, mas porque preciso dela para ser ator.
Voltando aos exclusivos, a TVI não tem renovado os contratos. Acha que uma estação que sempre apostou na ficção pode sobreviver sem atores que trabalhem só para si?
Isso depende do investimento que quer fazer ou não nos atores e da conjuntura económica. Pessoalmente, acho que os canais devem investir e ter atores exclusivos. É fundamental e acredito que aqueles que não os têm depressa vão "à vida". A Globo tem muitos exclusivos e se há coisa que tanto a TVI como a SIC e a RTP não têm é essa aposta frequente em profissionais na casa dos 60 anos, que são ícones do canal e sem os quais é impensável fazer uma novela. E esses ícones não fazem papeizinhos: eles são o centro da trama. E porquê? Porque o público se habituou a eles.
A continuidade dos atores em antena também pode cansar os espectadores, ou não?
No momento em que se habituam a uma cara, os espectadores vão ser-lhe fiel. E, se um canal deixa de ter essa familiaridade, dá um tiro no pé.
Portugal tem bastantes atores. Nesse caso, haveria espaço para todos?
Não. O mercado em Portugal é pequenino. Nós nem exportamos. A Plural exporta algumas coisas, mas nós não temos, de facto, uma indústria de entretenimento. Comparado com a vizinha Espanha, mesmo em estado de crise, nós não fazemos nada.
Nunca pensou ir trabalhar para o estrangeiro?
Nunca, porque a partir do final do primeiro ano do Conservatório comecei a trabalhar intensamente em Portugal. Não tinha sequer tempo para pensar e tinha tanta coisa para descobrir aqui... Pensei agora, quando fui fazer um filme ao Brasil e outro a Espanha, e estou a pensar, de alguma maneira, criar uma ponte com o Brasil. Penso seriamente virar-me para esse mercado, nomeadamente através do teatro e, de alguma maneira, investir no mercado televisivo também no Brasil.
Isso implica ir viver para lá?
Implica estar lá algum tempo. Em termos de teatro, as digressões no Brasil duram seis meses e não os 15 que duram em Portugal. Vamos ver o que a TVI me propõe, o que a SIC me propõe. Lá está: não penso assim no amanhã. É uma defesa. Penso e discuto, mas de uma forma muito hipotética. Quem está no mercado sabe que as direções de programas saltam e aparecem outras com novas políticas e posturas. Basta Mundo ao Contrário não ter audiência e muda tudo.
A SIC já lhe fez propostas?
Tenho propostas da SIC e da RTP. Vou esperar para ver. Até agora tenho-me sentido bem na TVI, mas não estou agarrado a nada nem a ninguém. É a lei do mercado e os atores têm de ter consciência disso. Não posso pensar que tenho lugar garantido por ser Marcantonio Del Carlo. O Ruy de Carvalho e a Eunice Muñoz já andaram e saíram de contratos exclusivos e são dois monstros consagrados. Achei errado terem de passar por isso com o estatuto, a idade e grande inteligência e talento que têm. Enfim...